Quando meu sono dá lugar as vozes, minha cama vira espaço pra dança solo, numa luta pela tranquilidade noturna incapaz de deixar as imagens mais recentes: se faz a hora das três produzir ferramentas pra amenizar o que nos impede de avançar.
"Na casa do meu avô tem cheiro de rosa branca, defuma, defumadô, a casa do meu avô";
Era noite, o candomblé rolando lá embaixo e eu na casa que fora minha na primeira infância, aguardando acabar. tentava dormir mas era frio, olhava para o teto e via a cor escura da umidade que tomava mais e mais. Meu avô não fez telhado, na laje a água infiltrava, fez vida no cimento. Em Diadema, perto da represa, lá em Eldorado, Vila Paulina é úmido e frio demais de noite. Não tinha nada pra fazer, ouvia os tambores, e comecei a ler os nomes dos livros, da estante curvada, abaloada já com o peso das coisas.
Tinham imãs, pedras, revistas, uma televisão velha e o gravador.
Ouvi coisas esquisitas, ouvi uma voz rouca e baixa, não entendi nada, era voz masculina.
Me encantei com o aparelho e coloquei no bolso.
Acabou o candomblé, de madrugada, raiando o dia, tomaram café os participantes e eu fui embora com a minha avó, voltamos pra casa.
E não é que deu pau?
O Chuleta era ruim, menino que era daqueles que batiam em todos mundo, a gente era menor que ele e ele passava a mão nas meninas, tínhamos uma mistura de raiva e medo dele na escola. Era bem branco, de olhos puxados, cabelo curtinho, cheio de sardas, magro, alto. Dava medo do olhar dele com sorrisinho de canto. Foi ele que sumiu com o gravador da minha mochila.
Nesta e nas minhas outras ladronagens, a pior parte é a sensação que estão a te pegar, vão te tirar a alma (apesar de saber que vão te devolver), vão queimar tuas mãos no fogão como a Lucinha fez com o Pico, com o Pelé ou como a Vó Lice fez com o Mauro. E você parou? Nem eles... Nem eu.
Não queimaram minha mão, nem bateram, mas me destruíram um pouco por dentro.
Eu queria dizer que não foi de maldade, só peguei porque era legal ter um gravador, não tinha erro.
Eu queria contar isso ao meu avô que ta agora no Hospital São Paulo, apesar de saber que ele nem vai se lembrar. Queria que ele desse uma risada dessa história. Ele já me abençoou depois disso, fazem muitos anos e eu acho que não roubei mais nada de lá, apesar de ficar encantada com tudo que ele representa, apesar de cada vez que eu ia visitá-lo ter vontade de chorar (meu irmão e prima sentem a mesma coisa, uma comoção ao ver meu avô no Axé).
Meu tio quando soube o que fiz, me disse coisas muito duras, ele também não se lembra. Eu lembro.
Eu só queria dizer que o peso das coisas, nem sempre é o que pensamos que é.
O valor não é sempre o mesmo pra todos.
A conexão que criamos com aquele que afetamos é algo transtornador, tanto quanto ter sido lesado, ter perdido algo, ter tido sua pele queimada, no fundo dependendo quem você atravessa o caminho, não será mais o mesmo. A marca estará sempre lá pra você se lembrar.
Kamikaze, vejo cabeças em bombas rolando.
Com fibra! Sempre! Aqui é guerra, dá medo disso também.
Por isso nos isolamos num mato simbólico, emudecemos, tornamo-nos mais bicho.
Assim nos protegemos, silenciando, entrando na terra, depois do sangue nas mãos e no chão.
Nossa natureza é assim. Não arriamos, a gente não perde, aqui se grita e se chora, se afasta e o tempo leva. A água que faz sujar paredes também limpa parte da consciência e assim a barriga chama de volta.